Mais ou menos acessível, pode?

Esse é um impasse o qual sempre me deparo no mundo real da acessibilidade arquitetônica e que, confesso, já me fez parar para pensar inúmeras vezes. Afinal, um imóvel ou mesmo um ambiente, precisa mesmo ser 100% acessível? Vou tentar explicar melhor essa questão, que já vou logo avisando, é muito polêmica, gera discussões calorosas, mas que, de verdade, eu consigo entender as considerações abordadas em ambos os lados. Lembrando que entender não é o mesmo que concordar.

A realidade

Vamos direto ao ponto, provavelmente o mais questionado aos profissionais que trabalham com a implantação da acessibilidade: é melhor atender uma parte das pessoas do que atender ninguém?

Que tal um exemplo prático? Vamos lá.
Um cliente precisa adequar o seu estabelecimento comercial aos padrões de acessibilidade para obter o alvará de funcionamento, daí ele mesmo ou o profissional responsável pelo projeto ou obra, nos chama para saber o que precisa ser feito. Maravilha, fazemos uma visita técnica ou analisamos o projeto arquitetônico e entregamos um orçamento para o serviço. Vamos supor que o cliente tenha aceitado nos contratar, então o próximo passo seria adequar aquele imóvel às normas técnicas e leis vigentes de acessibilidade, tornando-o acessível. Perfeito, o que o nosso escopo de trabalho contempla? Que devemos indicar quais intervenções devem ser feitas para que o imóvel em questão seja 100% acessível. Isso mesmo, para ser acessível, essas instalações devem atender o maior número possível de pessoas de acordo com as suas especificidades, dificuldades ou limitações e é justamente por isso que seguimos as determinações das normas técnicas relacionadas, pois elas já foram desenvolvidas para esse fim.

Tudo bem até aqui? Então, continuando, passado o prazo para desenvolvimento do serviço, apresentamos o laudo de acessibilidade contendo todas as orientações propostas, que vão desde a adequação da calçada da edificação, de vagas de garagem e sanitários, até a implantação de rampas de acesso, sinalização visual e tátil, entre outras. Estará tudo lá indicado no laudo, então é isso, o cliente ou o responsável técnico pelo projeto ou obra começa a executar cada item e o imóvel poderá ser considerado acessível, fim. Esse, sem dúvida, seria o melhor dos cenários, mas será que as coisas costumam acontecer dessa forma?

Elas deveriam acontecer dessa forma, mas existe um fator crucial nesse processo, o custo de implantação e, como todos bem sabem, ele sempre será minuciosamente avaliado em uma obra ou reforma e é bem aí que mora o perigo, pois nem sempre a acessibilidade tem a atenção e o respeito que merece por parte do empresário ou responsável pela intervenção. E isso acontece por inúmeras razões, sejam elas sociais ou culturais, onde abrir mão da acessibilidade torna-se uma opção aceitável e, inclusive, muitas vezes validada pelos órgãos municipais.

Vivemos em uma sociedade que ainda desconhece a realidade das pessoas com deficiência, mesmo que esse grupo represente 8,9% da população do país, segundo o módulo “Pessoas com Deficiências” da PNAD Contínua 2022, do IBGE. Ou seja, estamos falando de 18,6 milhões de pessoas que ainda encontram inúmeras barreiras físicas em nossas cidades, tanto nos espaços públicos como nos privados, de uso comum, e que as impedem de exercer o simples direito de ir e vir com autonomia e segurança.

Voltando ao exemplo do estabelecimento comercial, o que geralmente acontece na prática é uma “escolha” dos itens especificados no laudo de acessibilidade ou ainda, a sua execução de forma inadequada (isso no caso de existir um laudo). O cliente acaba selecionando, por conveniência ou mesmo alegando questões financeiras, o que deve de fato ser implantando, até porque, como prestadores de serviços, não temos o poder de fiscalizar e quem o tem, muitas vezes deixa passar vários itens por puro desconhecimento do assunto. Isso mesmo, muitos fiscais em nossas cidades simplesmente não conhecem as normas técnicas a fundo e acabam aprovando imóveis que não atendem as pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida em suas reais necessidades. Ainda é muito comum encontrar rampas de acesso com inclinação maior do que a permitida, calçadas com pisos inadequados e até esburacadas, escadas sem corrimãos em duas alturas e por aí vai, só que o resultado dessa falta de padronização nas edificações é um verdadeiro acúmulo de exemplos errados e negativos, que acabam por “deseducar” as pessoas que aprendem a conviver com os espaços e equipamentos implantados de qualquer jeito.

Mudança de cenário

Acredito que as mudanças devem acontecer de duas formas simultâneas, através da educação, onde a informação e a conscientização precisam estar mais presentes e acessíveis a todas as pessoas, inclusive aos futuros profissionais de arquitetura e engenharia que ainda se formam sem o conhecimento adequado para atuar na área de acessibilidade. Mas sem a fiscalização adequada por parte do poder público, dificilmente conseguiremos mudar esse cenário atual, simples assim. As cidades precisam abraçar essa causa e a acessibilidade não pode mais ser, na prática, uma opção, já que ela é um direito fundamental garantido por lei.